Obras da Fuvest: A crítica à sociedade portuguesa em "A relíquia" de Eça de Queirós

Jamille Rabelo de Freitas
Núbia Enedina Santos Souza


Em A Relíquia, Eça de Queirós critica a sociedade lusíada, alicerçada na figura do clero, mostrando personagens mercenárias, hipócritas e impiedosas. Com um tom irônico, o autor mescla o oportunismo com a credulidade, a esperteza com o abuso da boa fé, a mentira com a ingenuidade e a realidade com a aparência. Eça aponta o conservadorismo da igreja e o tradicionalismo burguês como causa maior da estagnação de Portugal. Para ele, tais práticas impediam o progresso e levavam a sociedade portuguesa à decadência moral.
Numa época onde a religião cristã era frequentada, em sua maioria, pelos burgueses, tendo como “figurante” a classe trabalhista, o trabalho era super valorizado com intuito de acalmar os ânimos dos proletariados e a filosofia de que eles não deveriam desejar mais do que lhes era dado era pregada fervorosamente pelo catolicismo a todo tempo.
No entanto, a contradição entre os ideais difundidos e os atos praticados era gritante quando se observava a vida ociosa dos “burguesinhos”; é nesse contexto de hipocrisia que se enquadra a figura de Teodorico Raposo: menino órfão, criado pela tia rica de quem cobiçava-lhe a riqueza e esperava alcançar através da sua falsa beatice.
Depois, no oratório, diante do altar juncado de camélias brancas, fui perfeito. Não ajoelhei, não me persignei; de longe com mous dedos, fiz ao Jesus de ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar – a atirei-lhe um olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se tem velhos segredos. A Titi surpreendeu esta intimidade com o Senhor; e quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de veludo verde), foi tanto para o seu Salvador como para seu sobrinho, que levantou as mãos adorabundas. (QUEIRÓS, 2001, p.185)
Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carne com saborosos amores no Terreiro da Erva; (...) Todos os quinze dias, porém, escrevia à titi, na minha boa letra, uma carta humilde e piedosa, onde lhe contava a severidade dos meus estudos, o recato dos meus hábitos, as copiosas rezas e os rígidos jejuns, os sermões de que me nutria, os doces desagravos ao Coração de Jesus, à tarde, na Sé, e as novenas com que consolava a minha alma em Santa Cruz no remanso dos dias feriados... (Idem, p.23-24)
A tia de Teodorico, Dona Maria do Patrocínio – Titi, é a representação do fanatismo religioso. Impiedosa e rancorosa, ela vê pecado até na natureza por ter criado dois sexos: homem e mulher.
- Que se agüente... É o que sucede a quem não tem temor de Deus e se mete com bêbadas... Não tivesse comido tudo em relaxações... Cá para mim, homem perdido com saias, homem que anda atrás de saias, acabou... Não tem o perdão de Deus, nem tem o meu! Que padeça, que padeça, que também Nosso Senhor Jesus Cristo padeceu! (Idem, p.26-27)
E não lhe bastava reprovar o amor como coisa profana; a sra. D. Patrocínio das Neves fazia uma carantonha, e varria-o como coisa suja. Um moço grave, amando seriamente, era para si “uma porcaria”! Quando sabia duma senhora que tivera um filho, cuspia para o lado, rosnava – “que nojo!”. E quase achava a natureza obscena por ter criado dois sexos. (Idem, p.34)
Eça critica a beatice doentia de Titi ao tempo em que se aproveita da hipocrisia e do cinismo de Raposão para atacar o abuso da boa fé e da credulidade.
Corrigi então a minha devoção e tornei-a perfeita. Pensando que o bacalhau das sextas-feiras não fosse uma suficiente mortificação, nesses dias, diante da Titi, bebia asceticamente um copo de água e trincava uma côdea de pão... (QUEIRÓS, 1997, p. 20)
Acordando do seu langor, trêmula e pálida, mas com a gravidade de um pontífice, a Titi tomou o embrulho, fez mesura aos santos, colocou-o sobre o altar; devotamente desatou o nó do nastro vermelho; depois, com o cuidado de quem teme magoar um corpo divino, foi desfazendo uma a uma as dobras do papel pardo..." (QUEIRÓS, 1997, p. 122)
Assim, o autor traça um paralelo entre o sagrado, representação da beatice e da fé cega e o profano, figurado pela hipocrisia e ambição desmedida. Retrato das conseqüências de uma sociedade materialista, que ao mascarar seus valores, dissimula ações e delineia uma atmosfera hipócrita.
Fonte: http://secretalitterarum.blogspot.com.br/2011/09/critica-sociedade-portuguesa-em.html

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