Neil
Gaiman:
Por que nosso futuro depende de bibliotecas,
de
leitura e de sonhar acordado...
Uma
palestra que explica porque usar nossa imaginação e providenciar
para que outros utilizem as suas, é uma obrigação de todos os
cidadãos.
É
importante para as pessoas dizerem de que lado estão e porque, e se
elas podem ou não ser tendenciosas. Um tipo de declaração de
interesse dos membros. Então eu conversarei com vocês sobre
leitura. Direi à vocês que as bibliotecas são importantes. Vou
sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais
importantes que alguém pode fazer. Vou fazer um apelo apaixonado
para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários
são e para que preservem ambos.
E eu sou
óbvio e enormemente tendencioso: sou um escritor, muitas vezes um
autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Por cerca de 30
anos tenho ganhado a minha vida através das minhas palavras,
principalmente por inventar as coisas e escrevê-las. Obviamente está
em meu interesse que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que
bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir amor pela leitura e
lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou
tendencioso como escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso
como leitor. E sou ainda mais tendencioso enquanto cidadão
britânico.
E
estou aqui dando essa palestra hoje a noite sob os auspícios
da Reading
Agency:
uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas
oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores
entusiasmados e confiantes. Que apoia programas de alfabetização,
bibliotecas e indivíduos e arbitrária e abertamente incentiva o ato
da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre
essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje a noite. Eu
quero falar sobre o que a leitura faz. O porquê de ela ser boa.
Uma vez eu
estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de
prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos
Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu
futuro crescimento – quantas celas precisarão? Quantos
prisioneiros teremos daqui 15 anos? E eles descobriram que poderiam
prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples,
baseado em perguntar a porcentagem de crianças entre 10 e 11
anos que não conseguiam ler. E certamente não conseguiam ler por
prazer.
Não é um
pra um: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não
tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho
que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito
simples. Pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção
tem duas utilidades. Primeiramente, é uma droga que é uma porta
para leituras. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer
virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil,
porque alguém está em perigo e você precisa saber como tudo vai
acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos
mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar.
Descobrir que a
leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você
está no caminho para ler de tudo. E a leitura é a chave. Houve um
burburinho brevemente há alguns anos atrás sobre a idéia de que
estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a
habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de
alguma forma redundante, mas esses dias acabaram: as palavras são
mais importantes do que jamais foram: nós navegamos o mundo com
palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos
seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. As pessoas que
não podem entender umas às outras não podem trocar idéias, não
podem se comunicar e apenas programas de tradução vão tão longe.
A forma mais
simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é
ensiná-los a ler, e mostrarmos a eles que a leitura é uma atividade
prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar
livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que
eles os leiam.
“Temos
a obrigação de imaginar…” Neil Gaiman dá uma palestra anual
à Reading
Agency sobre
o futuro da leitura e das bibliotecas.
Fotografia: Robyn Mayes.
Eu não acho
que exista algo como um livro ruim para crianças. Vez e outra se
torna moda entre alguns adultos escolher um subconjunto de livros
para crianças, um gênero, talvez, ou um autor e declará-los livros
ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso
acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um autor ruim, R.
L. Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos tem sido
acusados de promover o analfabetismo.
Não
existem escritores ruins…
O
famoso livro de Enid Blyton.
Foto:
Greg Balfour Evans/Alamy
É
tosco. É arrogante e é burro. Não existem autores ruins para
crianças, que as crianças gostem e querem ler e buscar, porque cada
criança é diferente. Eles podem encontrar as histórias que
precisam, e eles levam a si mesmos nas histórias. Uma ideia banal e
desgastada não é banal nem desgastada para eles. Esta é a primeira
vez que a criança a encontrou. Não desencoraje uma criança de ler
porque você acha que o que eles estão lendo é errado. A ficção
que você não gosta é uma rota para outros livros que você pode
preferir. E nem todo mundo tem o mesmo gosto que você.
Adultos bem
intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela
leitura: parar de ler pra eles o que eles gostam, ou dar a eles
livros ‘chatos mas que valem a pena’ que você gosta, os
equivalentes “melhorados” da literatura Vitoriana do século XXI.
Você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal
e pior ainda, desagradável.
Precisamos
que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que
eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, à
alfabetização. (Além disso, não faça o que eu fiz quando a minha
filha de 11 anos estava gostando de ler R. L. Stine, que foi pegar
uma cópia de Carrie do Stephen King e dizer que se você gosta
deste, adorará isto! Holly não leu nada além de histórias seguras
de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje
me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).
E a segunda
coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste
TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a
outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a
partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você,
você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e
olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares
e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que
qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo
outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, você estará
levemente transformado.
Empatia é
uma ferramenta para tornar pessoas em grupos, que nos permite que
funcionemos como mais do que indivíduos obcecados consigo mesmos.
Você também
está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para
fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não
precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na
China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e
fantasia aprovada pelo partido na história da China. E em algum
momento eu tomei um alto oficial de lado e perguntei a ele “Por
que? A ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que
isso mudou?”. É simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes
em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas
eles não inovavam e não inventavam. Eles não imaginavam. Então
eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple,
para a Microsoft, para o Google e perguntaram às pessoas de lá que
estavam inventando seu próprio futuro. E descobriram que todos eles
leram ficção científica quando eram meninos e meninas. A
ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para um lugar
que você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros
mundos, como aqueles que comeram a fruta da fada, você pode nunca
mais ficar completamente satisfeito com o mundo no qual você
cresceu.
Biblioteca
Nacional
Descontentamento
é uma coisa boa: pessoas descontentes podem modificar e melhorar o
mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente. E enquanto ainda
estamos nesse assunto, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre
escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse uma coisa
ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato
utilizado pelos confusos, pelos tolos e pelos desiludidos e a única
ficção que seja válida, para adultos ou crianças é a ficção
mimética, espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se
encontra.
Se você
estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar
desagradável, com pessoas que te quisessem mal e alguém te
oferecesse um escape temporário, por que você não ia aceitar isso?
E ficção escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta,
mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no
controle, esteja com pessoas com quem você queira estar (e livros
são lugares reais, não se enganem sobre isso); e mais importante,
durante o seu escape, livros também podem te dar conhecimento sobre
o mundo e o seu predicamento, te dar armas, te dar armaduras: coisas
reais que você pode levar de volta para a sua prisão.
Habilidades,
conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de
verdade.
Como J. R.
R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que fazem injúrias contra
o escape são prisioneiros.
A
ilustração de Tolkien
da casa de Bilbo,
Bag End.
Foto:
HarperCollins
Outra forma
de destruir o amor de uma criança pela leitura, claro, é se
assegurar de que não existam livros de nenhum tipo por perto. E não
dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte.
Eu tive uma biblioteca local excelente enquanto eu cresci. Eu tive o
tipo de pais que podiam ser persuadidos a me deixar na biblioteca no
caminho do trabalho deles nas férias de verão, e o tipo de
bibliotecários que não se importavam que um menino pequeno e
desacompanhado ficasse na biblioteca das crianças todas as manhãs e
ficasse mexendo no catálogo de cartões, procurando por livros com
fantasmas ou mágica ou foguetes neles, procurando por vampiros ou
detetives ou bruxas ou fantasias. E quando eu terminei de ler a
biblioteca de crianças eu comecei a de adultos.
Eles eram
ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e eles gostavam dos
livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros
das outras bibliotecas em empréstimo inter-bibliotecas. Eles não
eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam
apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados
que amava ler e conversariam comigo sobre os livros que eu estava
lendo, achariam pra mim outros livros em uma série deles, eles me
ajudariam. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos
– o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava
acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.
Mas as
bibliotecas tem a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade
de ideias, a liberdade de comunicação. Elas tem a ver com educação
(que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou
a universidade), com entretenimento, tem a ver com criar espaços
seguros e com o acesso à informação.
Eu me
preocupo que no século XXI as pessoas entendam errado o que são
bibliotecas e qual é o propósito delas. Se você perceber uma
biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado
em um mundo no qual a maioria, mas não todos, os livros impressos
existem digitalmente. Mas pensar assim é errar o ponto
fundamentalmente.
Eu acho que
tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e
a informação certa tem um enorme valor. Por toda a história
humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação
desejada era sempre importante, e sempre valia alguma coisa: quando
plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias
– eles eram sempre bons para uma refeição e companhia. Informação
era uma coisa valorosa, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la
podiam cobrar por este serviço.
Nos últimos
anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para
uma dirigida por um excesso de informação. De acordo com o Eric
Schmidt do Google, a cada dois dias agora a raça humana cria tanta
informação quanto criávamos desde o início da civilização até
2003. Isto é cerca de cinco exobytes de dados por dia, para vocês
que mantém a contagem. O desafio se torna não encontrar aquela
planta escassa crescendo no deserto, mas encontrar uma planta
específica crescendo em uma floresta. Precisaremos de ajuda para
navegar nesta informação e achar a coisa que precisamos de verdade.
Foto:
Alamy
Bibliotecas
são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros são
apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e
bibliotecas podem fornecer livros gratuitamente e legalmente.
Crianças estão emprestando livros de bibliotecas hoje mais do que
nunca – livros de todos os tipos: de papel e digital e em áudio.
Mas as bibliotecas também são, por exemplo, lugares onde pessoas
que não tem computadores, que podem não ter conexão à internet,
podem ficar online sem pagar nada: o que é imensamente importante
quando a forma que você procura empregos, se candidata para
entrevistas ou aplica para benefícios está cada vez mais migrando
para o ambiente exclusivamente online. Bibliotecários podem ajudar
estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não
acredito que todos os livros irão ou devam migrar para as telas:
como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle
aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são
velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a
razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em
serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros
físicos são durões, difíceis de destruir, resistentes à banhos,
operam a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem
livros, e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às
bibliotecas, bem como as bibliotecas já se tornaram lugares que você
pode ir para ter acesso à ebooks, e audio-livros e DVDs e conteúdo
na web.
Uma
biblioteca é um lugar que é um repositório de informação e dá a
cada cidadão acesso igualitário a ele. Isso inclui informação
sobre saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço
comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um
lugar com bibliotecários. Como as bibliotecas do futuro serão é
algo que deveríamos estar imaginando agora.
Alfabetização
é mais importante do que nunca, nesse mundo de mensagens e e-mail,
um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever,
precisamos de cidadãos globais que possam ler confortavelmente,
compreender o que estão lendo, entender as nuances e se fazer
entender.
As
bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É tão
lamentável que, ao redor do mundo, nós observemos autoridades
locais apropriarem-se da oportunidade de fechar bibliotecas como uma
maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão
roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando os
portões que deveriam ser abertos.
De acordo
com um estudo recente feito pela Organisation for
Economic Cooperation and Development, a Ingaterra é o
“único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência
tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as
técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem, depois
de outros fatores, tais como gênero, perfis sócio-econômicos e
tipo de ocupações levados em consideração”.
Colocando de
outro modo, nossas crianças e netos são menos alfabetizados e menos
capazes de utilizar técnicas de matemática do que nós. Eles são
menos capazes de navegar o mundo, de entendê-lo e de resolver
problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão
menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos
empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra
ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas
porque faltará mão de obra especializada.
Existem contos que são mais velhos que alguns
países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos
quais eles foram contados pela primeira vez.
Eu acho que
nós temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e
obrigações com as crianças, com os adultos que essas crianças se
tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto
leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em
tentar explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito
que temos uma obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e
privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, então nós
aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Mostramos aos outros
que ler é uma coisa boa.
Temos a
obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar
outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o
fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então
você não valoriza informação ou cultura ou sabedoria. Você está
silenciando as vozes do passado e você está prejudicando o futuro.
Temos a
obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler pra elas
coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já
estamos cansados. Fazer as vozes, fazer com que seja interessante e
não parar de ler pra elas apenas porque elas já aprenderam a ler
sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de
aproximação, como um tempo onde não se fique checando o telefone,
quando as distrações do mundo são postas de lado.
Temos a
obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos: descobrir o que
as palavras significam e como empregá-las, nos comunicarmos
claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos
tentar congelar a linguagem, ou fingir que é uma coisa morta que
deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui,
que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias
mudem com o tempo.
Nós
escritores – e especialmente escritores para crianças, mas todos
os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a
obrigação de escrever coisas verdadeiras, especialmente importantes
quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares
que nunca existiram – entender que a verdade não está no que
acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a
mentira que diz a verdade, afinal. Temos a obrigação de não
entediar nossos leitores, mas fazê-los sentir a necessidade de virar
as páginas.
Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal,
é uma estória que eles não são capazes de parar de ler. E
enquanto nós precisamos contar a nossos leitores coisas verdadeiras
e dar a ele armas e dar a eles armaduras e passar a eles qualquer
sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo verde,
nós temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar
mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores
como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes
pré-mastigados; e nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma
circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não
gostaríamos de ler.
Temos a
obrigação de entender e reconhecer que enquanto escritores para
crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós
estragarmos isso e escrevermos livros chatos que distanciam as
crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando o
nosso próprio futuro e diminuindo o deles.
Todos nós –
adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de
sonhar acordado. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir
que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a
sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo
numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que
indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos
fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem
ser diferentes.
Olhe à sua
volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em
que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é
que seja esquecido. É isto: que tudo o que você vê, incluindo as
paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era
mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira.
Alguém tinha que imaginar uma forma que eu pudesse falar com vocês
em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando uma chuva.
Este quarto e as coisas nele, e todas as outras coisas nesse prédio,
esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas
imaginaram coisas.
Temos a
obrigação de fazer com que as coisas sejam belas. Não de deixar o
mundo mais feio do que já encontramos, não de esvaziar os oceanos,
não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a
obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas
crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e
aleijamos de forma míope.
Temos a
obrigação de dizer aos nossos políticos o que queremos, votar
contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendem o valor
da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir
para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização.
Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão
de humanidade em comum.
Uma vez
perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças
inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer
que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de
fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leia
mais contos de fadas para elas”. Ele entendeu o valor da leitura e
da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um
mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e imaginar e
compreender.
• Esta
é uma versão editada da palestra do Neil Gaiman para a Reading
Agency, realizada dia 14 de outubro de 2013 (segunda-feira) no
Barbican em Londres. A série anual de palestras da Reading Agency
começou em 2012 como uma plataforma para que escritores e pensadores
compartilhassem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as
bibliotecas.
Uma
palestra que explica porque usar nossa imaginação e providenciar
para que outros utilizem as suas, é uma obrigação de todos os
cidadãos.
É
importante para as pessoas dizerem de que lado estão e porque, e se
elas podem ou não ser tendenciosas. Um tipo de declaração de
interesse dos membros. Então eu conversarei com vocês sobre
leitura. Direi à vocês que as bibliotecas são importantes. Vou
sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais
importantes que alguém pode fazer. Vou fazer um apelo apaixonado
para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários
são e para que preservem ambos.
E eu sou
óbvio e enormemente tendencioso: sou um escritor, muitas vezes um
autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Por cerca de 30
anos tenho ganhado a minha vida através das minhas palavras,
principalmente por inventar as coisas e escrevê-las. Obviamente está
em meu interesse que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que
bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir amor pela leitura e
lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou
tendencioso como escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso
como leitor. E sou ainda mais tendencioso enquanto cidadão
britânico.
E
estou aqui dando essa palestra hoje a noite sob os auspícios
da Reading
Agency:
uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas
oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores
entusiasmados e confiantes. Que apoia programas de alfabetização,
bibliotecas e indivíduos e arbitrária e abertamente incentiva o ato
da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre
essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje a noite. Eu
quero falar sobre o que a leitura faz. O porquê de ela ser boa.
Uma vez eu
estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de
prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos
Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu
futuro crescimento – quantas celas precisarão? Quantos
prisioneiros teremos daqui 15 anos? E eles descobriram que poderiam
prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples,
baseado em perguntar a porcentagem de crianças entre 10 e 11
anos que não conseguiam ler. E certamente não conseguiam ler por
prazer.
Não é um
pra um: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não
tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho
que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito
simples. Pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção
tem duas utilidades. Primeiramente, é uma droga que é uma porta
para leituras. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer
virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil,
porque alguém está em perigo e você precisa saber como tudo vai
acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos
mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar.
Descobrir que a
leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você
está no caminho para ler de tudo. E a leitura é a chave. Houve um
burburinho brevemente há alguns anos atrás sobre a idéia de que
estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a
habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de
alguma forma redundante, mas esses dias acabaram: as palavras são
mais importantes do que jamais foram: nós navegamos o mundo com
palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos
seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. As pessoas que
não podem entender umas às outras não podem trocar idéias, não
podem se comunicar e apenas programas de tradução vão tão longe.
A forma mais
simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é
ensiná-los a ler, e mostrarmos a eles que a leitura é uma atividade
prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar
livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que
eles os leiam.
“Temos
a obrigação de imaginar…” Neil Gaiman dá uma palestra anual
à Reading
Agency sobre
o futuro da leitura e das bibliotecas.
Fotografia: Robyn Mayes.
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Eu não acho
que exista algo como um livro ruim para crianças. Vez e outra se
torna moda entre alguns adultos escolher um subconjunto de livros
para crianças, um gênero, talvez, ou um autor e declará-los livros
ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso
acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um autor ruim, R.
L. Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos tem sido
acusados de promover o analfabetismo.
Não
existem escritores ruins…
O
famoso livro de Enid Blyton.
Foto:
Greg Balfour Evans/Alamy
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Adultos bem
intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela
leitura: parar de ler pra eles o que eles gostam, ou dar a eles
livros ‘chatos mas que valem a pena’ que você gosta, os
equivalentes “melhorados” da literatura Vitoriana do século XXI.
Você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal
e pior ainda, desagradável.
Precisamos
que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que
eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, à
alfabetização. (Além disso, não faça o que eu fiz quando a minha
filha de 11 anos estava gostando de ler R. L. Stine, que foi pegar
uma cópia de Carrie do Stephen King e dizer que se você gosta
deste, adorará isto! Holly não leu nada além de histórias seguras
de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje
me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).
E a segunda
coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste
TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a
outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a
partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você,
você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e
olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares
e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que
qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo
outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, você estará
levemente transformado.
Empatia é
uma ferramenta para tornar pessoas em grupos, que nos permite que
funcionemos como mais do que indivíduos obcecados consigo mesmos.
Você também
está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para
fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não
precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na
China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e
fantasia aprovada pelo partido na história da China. E em algum
momento eu tomei um alto oficial de lado e perguntei a ele “Por
que? A ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que
isso mudou?”. É simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes
em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas
eles não inovavam e não inventavam. Eles não imaginavam. Então
eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple,
para a Microsoft, para o Google e perguntaram às pessoas de lá que
estavam inventando seu próprio futuro. E descobriram que todos eles
leram ficção científica quando eram meninos e meninas. A
ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para um lugar
que você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros
mundos, como aqueles que comeram a fruta da fada, você pode nunca
mais ficar completamente satisfeito com o mundo no qual você
cresceu.
Biblioteca
Nacional
|
Se você
estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar
desagradável, com pessoas que te quisessem mal e alguém te
oferecesse um escape temporário, por que você não ia aceitar isso?
E ficção escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta,
mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no
controle, esteja com pessoas com quem você queira estar (e livros
são lugares reais, não se enganem sobre isso); e mais importante,
durante o seu escape, livros também podem te dar conhecimento sobre
o mundo e o seu predicamento, te dar armas, te dar armaduras: coisas
reais que você pode levar de volta para a sua prisão.
Habilidades,
conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de
verdade.
Como J. R.
R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que fazem injúrias contra
o escape são prisioneiros.
A
ilustração de Tolkien
da casa de Bilbo,
Bag End.
Foto:
HarperCollins
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Eles eram
ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e eles gostavam dos
livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros
das outras bibliotecas em empréstimo inter-bibliotecas. Eles não
eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam
apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados
que amava ler e conversariam comigo sobre os livros que eu estava
lendo, achariam pra mim outros livros em uma série deles, eles me
ajudariam. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos
– o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava
acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.
Mas as
bibliotecas tem a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade
de ideias, a liberdade de comunicação. Elas tem a ver com educação
(que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou
a universidade), com entretenimento, tem a ver com criar espaços
seguros e com o acesso à informação.
Eu me
preocupo que no século XXI as pessoas entendam errado o que são
bibliotecas e qual é o propósito delas. Se você perceber uma
biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado
em um mundo no qual a maioria, mas não todos, os livros impressos
existem digitalmente. Mas pensar assim é errar o ponto
fundamentalmente.
Eu acho que
tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e
a informação certa tem um enorme valor. Por toda a história
humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação
desejada era sempre importante, e sempre valia alguma coisa: quando
plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias
– eles eram sempre bons para uma refeição e companhia. Informação
era uma coisa valorosa, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la
podiam cobrar por este serviço.
Nos últimos
anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para
uma dirigida por um excesso de informação. De acordo com o Eric
Schmidt do Google, a cada dois dias agora a raça humana cria tanta
informação quanto criávamos desde o início da civilização até
2003. Isto é cerca de cinco exobytes de dados por dia, para vocês
que mantém a contagem. O desafio se torna não encontrar aquela
planta escassa crescendo no deserto, mas encontrar uma planta
específica crescendo em uma floresta. Precisaremos de ajuda para
navegar nesta informação e achar a coisa que precisamos de verdade.
Foto:
Alamy
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Bibliotecas
são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros são
apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e
bibliotecas podem fornecer livros gratuitamente e legalmente.
Crianças estão emprestando livros de bibliotecas hoje mais do que
nunca – livros de todos os tipos: de papel e digital e em áudio.
Mas as bibliotecas também são, por exemplo, lugares onde pessoas
que não tem computadores, que podem não ter conexão à internet,
podem ficar online sem pagar nada: o que é imensamente importante
quando a forma que você procura empregos, se candidata para
entrevistas ou aplica para benefícios está cada vez mais migrando
para o ambiente exclusivamente online. Bibliotecários podem ajudar
estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não
acredito que todos os livros irão ou devam migrar para as telas:
como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle
aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são
velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a
razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em
serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros
físicos são durões, difíceis de destruir, resistentes à banhos,
operam a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem
livros, e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às
bibliotecas, bem como as bibliotecas já se tornaram lugares que você
pode ir para ter acesso à ebooks, e audio-livros e DVDs e conteúdo
na web.
Uma
biblioteca é um lugar que é um repositório de informação e dá a
cada cidadão acesso igualitário a ele. Isso inclui informação
sobre saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço
comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um
lugar com bibliotecários. Como as bibliotecas do futuro serão é
algo que deveríamos estar imaginando agora.
Alfabetização
é mais importante do que nunca, nesse mundo de mensagens e e-mail,
um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever,
precisamos de cidadãos globais que possam ler confortavelmente,
compreender o que estão lendo, entender as nuances e se fazer
entender.
As
bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É tão
lamentável que, ao redor do mundo, nós observemos autoridades
locais apropriarem-se da oportunidade de fechar bibliotecas como uma
maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão
roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando os
portões que deveriam ser abertos.
De acordo
com um estudo recente feito pela Organisation for
Economic Cooperation and Development, a Ingaterra é o
“único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência
tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as
técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem, depois
de outros fatores, tais como gênero, perfis sócio-econômicos e
tipo de ocupações levados em consideração”.
Colocando de
outro modo, nossas crianças e netos são menos alfabetizados e menos
capazes de utilizar técnicas de matemática do que nós. Eles são
menos capazes de navegar o mundo, de entendê-lo e de resolver
problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão
menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos
empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra
ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas
porque faltará mão de obra especializada.
Existem contos que são mais velhos que alguns
países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos
quais eles foram contados pela primeira vez.
Eu acho que
nós temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e
obrigações com as crianças, com os adultos que essas crianças se
tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto
leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em
tentar explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito
que temos uma obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e
privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, então nós
aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Mostramos aos outros
que ler é uma coisa boa.
Temos a
obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar
outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o
fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então
você não valoriza informação ou cultura ou sabedoria. Você está
silenciando as vozes do passado e você está prejudicando o futuro.
Temos a
obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler pra elas
coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já
estamos cansados. Fazer as vozes, fazer com que seja interessante e
não parar de ler pra elas apenas porque elas já aprenderam a ler
sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de
aproximação, como um tempo onde não se fique checando o telefone,
quando as distrações do mundo são postas de lado.
Temos a
obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos: descobrir o que
as palavras significam e como empregá-las, nos comunicarmos
claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos
tentar congelar a linguagem, ou fingir que é uma coisa morta que
deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui,
que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias
mudem com o tempo.
Nós
escritores – e especialmente escritores para crianças, mas todos
os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a
obrigação de escrever coisas verdadeiras, especialmente importantes
quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares
que nunca existiram – entender que a verdade não está no que
acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a
mentira que diz a verdade, afinal. Temos a obrigação de não
entediar nossos leitores, mas fazê-los sentir a necessidade de virar
as páginas.
Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal,
é uma estória que eles não são capazes de parar de ler. E
enquanto nós precisamos contar a nossos leitores coisas verdadeiras
e dar a ele armas e dar a eles armaduras e passar a eles qualquer
sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo verde,
nós temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar
mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores
como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes
pré-mastigados; e nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma
circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não
gostaríamos de ler.
Temos a
obrigação de entender e reconhecer que enquanto escritores para
crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós
estragarmos isso e escrevermos livros chatos que distanciam as
crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando o
nosso próprio futuro e diminuindo o deles.
Todos nós –
adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de
sonhar acordado. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir
que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a
sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo
numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que
indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos
fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem
ser diferentes.
Olhe à sua
volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em
que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é
que seja esquecido. É isto: que tudo o que você vê, incluindo as
paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era
mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira.
Alguém tinha que imaginar uma forma que eu pudesse falar com vocês
em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando uma chuva.
Este quarto e as coisas nele, e todas as outras coisas nesse prédio,
esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas
imaginaram coisas.
Temos a
obrigação de fazer com que as coisas sejam belas. Não de deixar o
mundo mais feio do que já encontramos, não de esvaziar os oceanos,
não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a
obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas
crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e
aleijamos de forma míope.
Temos a
obrigação de dizer aos nossos políticos o que queremos, votar
contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendem o valor
da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir
para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização.
Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão
de humanidade em comum.
Uma vez
perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças
inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer
que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de
fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leia
mais contos de fadas para elas”. Ele entendeu o valor da leitura e
da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um
mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e imaginar e
compreender.
• Esta
é uma versão editada da palestra do Neil Gaiman para a Reading
Agency, realizada dia 14 de outubro de 2013 (segunda-feira) no
Barbican em Londres. A série anual de palestras da Reading Agency
começou em 2012 como uma plataforma para que escritores e pensadores
compartilhassem ideias originais e desafiadoras sobre a leitura e as
bibliotecas.
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