Todo mundo e ninguém
(Auto da Lusitânia, de Gil Vicente)
Ninguém
Tu estás a fim de quê?
Todo Mundo
A fim de coisas buscar
que não consigo topar.
Mas não desisto, porque
o cara tem de teimar.
Ninguém
Me diz teu nome primeiro.
Todo Mundo
Eu me chamo Todo Mundo
e passo o dia e o ano inteiro
correndo atrás de dinheiro,
seja limpo ou seja imundo.
Belzebu
Vale a pena dar ciência
e anotar isto bem,
por ser fato verdadeiro:
Que ninguém tem consciência,
e Todo Mundo, dinheiro.
Ninguém
E que mais procuras, hem?
Todo Mundo
Procuro poder e glória.
Ninguém
Eu cá não vou nessa história.
Só quero virtude... Amém.
Belzebu
Mas o papai não se ilude
e traça: Livro segundo.
Busca o poder Todo Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém
Que desejas mais, sabido?
Todo Mundo
Minha ação elogiada
em todo e qualquer sentido.
Ninguém
Prefiro ser repreendido
quando der uma mancada.
Belzebu
Aqui deixo por escrito
o que querem, lado a lado:
Todo Mundo ser louvado
e Ninguém levar um pito.
Ninguém
E que mais, amigo meu?
Todo Mundo
Mais a vida. A vida, olé!
Ninguém
A vida? Não sei o que é.
A morte, conheço eu.
Belzebu
Esta agora é muito forte
e guardo para ser lida:
Todo Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo Mundo
Também quero o Paraíso,
mas sem ter que me chatear.
Ninguém
E eu, suando pra pagar
minhas faltas de juízo!
Belzebu
Para que sirva de aviso
mais uma transa se escreve:
Todo Mundo quer Paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo Mundo
Eu sou vidrado em tapear,
e mentir nasceu comigo.
Ninguém
A verdade eu sempre digo
sem nunca chantagear.
Belzebu
Boto anúncio na cidade,
deste troço curioso:
Todo Mundo é mentiroso
e Ninguém fala a verdade.
Ninguém
Que mais, bicho?
Todo Mundo
Bajular.
Ninguém
Eu cá não jogo confete.
Belzebu
Três mais quatro igual a sete.
O programa sai do ar.
Lero lero lero lero
curro paco paco paco
Todo Mundo é puxa-saco
e Ninguém quer ser sincero!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Discursos de primavera e algumas sombras. Rio de Janeiro, Record, 1994. p.101.
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